sábado, 1 de fevereiro de 2014

Despedida

Minha amada, eu nunca imaginei que este dia chegaria. Você é tantos anos mais nova do que eu... imaginava que nós nunca teríamos fim. Mas tudo morre um dia.. Mas tivemos momentos lindos, não? Se lembra quando a gente se conheceu? Eu estava em um simpósio de medicina em Paris, e você era uma turista perdida que errou a reserva no restaurante. Lembra da confusão? Eu te salvei daquele garçom chato e a convidei pra minha mesa. Eu tinha que te convidar... você era linda demais pra ser ignorada - por qualquer um.
É engraçado como a gente se conheceu justamente numa viagem. Nós dois adorávamos viajar, e cada canto do mundo ganhou um brilho novo quando você estava comigo. Mesmo lugares que eu havia visitado antes inúmeras vezes... alias, até mesmo lugares que eu nunca visitaria por conta própria, como o Tibete. Lá foi a primeira vez que a gente falou sobre a morte, talvez sem imaginar que ela um dia viria ao nosso encontro. A gente viu ao longe um “funeral celeste”. Acho um rito muito impactante aos olhos ocidentais, mas você quis ver mesmo assim. O Tibete é uma região montanhosa demais para se enterrar corpos. Isto, junto á noção budista de ciclo e renascimento origina um dos rituais mais estranhos que existem: o corpo do morto não é enterrado ou cremado, mas preparado adequadamente para ser devorado por abutres. Mesmo eu, uma pessoa fria após inúmeras cirurgias que já realizei não tinha certeza se teria estomago pra assistir isso. Mas você acompanhou tudo serenamente. Ao final do ritual, você me abraçou forte e disse que achou aquilo tudo lindo... me fez prometer que sua partida seria assim. Eu assenti com a cabeça displicentemente, pois achei que seria uma promessa que eu não teria que cumprir.
No entanto, aqui estamos. Eu tomei todo o cuidado para que saia tudo bem. Eu tomei o lugar do homem que realiza o rito pedi orientações precisas do que tem que ser feito. Eu não deixaria outro homem te tocar. Sabe como sou cuidadoso, não cometerei erro algum. 
O caminho até a montanha é quase todo feito de carro, mas eu faço questão de carregar seu corpo inerte com meus próprios braços no curto caminho até o local correto. Seu corpo está envolto em mantas negras, mas eu fiz questão de não deixar tudo muito abafado. Eu pego a faca e abro o casulo onde está você... É horrível te ver nesta situação: nua, inerte, com os membros amarrados como um animal para ser abatido. Mas você escolheu isto, e apenas eu poderia fazer as coisas do jeito certo.
Eu começo cortando as cordas, adiando o máximo o momento em que terei que terei que dilacerar você. Mas é tudo muito rápido, e quando eu vejo já é hora de avançar o ritual. Oh, Deus, como isto é cruel para meu coração! O rito pede que primeiro seja feito um escalpo no corpo... Eu seguro suavemente sua cabeça, e levanto seus cabelos loiros pela nuca... eu passo a faca debaixo para cima, em um movimento rápido que separa parte do seu couro cabeludo do seu crânio. Os Abutres começam a se juntar próximo ao local, observando ao longe. Começo a experimentar agonia intensa, mas eu sei que se me render ao desespero, não consigo mais prosseguir. Eu respiro fundo e sigo.
Agora eu preciso fazer cortes no seu torso e membros. Eu decido começar pelas costas, para não ter que  encarar você. Sua pele alva e suave é cortada sucessivas vezes. Mas eu não sigo o ritual a risca, e faço cortes cuja profundidade é superficial. A carne é cortada, mas nenhum vaso sanguíneo ou órgão é ferido - eu não me daria ao direito de feri-la por dentro. Quando eu acabo as costas, tomo coragem e te viro de frente... mas ainda não consigo encarar seus olhos. Eu começo de baixo, para adiar o momento o mais que eu puder. Cortes sucessivos são feitos. Primeiro eu caminho pelas suas belas pernas. Eu avanço pelo torso, tentando ignorar o fato que é a ultima vez que verei tamanha beleza. Meu Deus! Seus braços... Eles são tão lindos também! Eu nunca havia percebido antes que até eles eram perfeitos! Minha garganta tem um nó depois disso, mas eu ainda preciso acabar tudo.
Eu fecho os olhos por alguns momentos, me preparando para a despedida final. Eu espero o tanto que posso, mas eu sei que é inevitável. Eu abro os olhos frente a seu rosto, e meus olhos encontram os seus. Azuis e brilhantes, mesmo que não se movam eles denunciam que você ainda está ai. Eu seguro o seu queixo e, em pranto, corto seu rosto olhando nos seus olhos. Por quê você fez isso comigo amor? Era tudo tão perfeito! Como fomos acabar assim?  Por que diabos você tinha que me trair? Meu Deus, justo com meu sócio? Aquilo me dilacerou mais que estas navalhas dilaceram você... percebe que me forçou a isso? Eu odeio ter que dar este fim para você! Eu tenho segurado a dor por meses... Até planejei está viagem para nós para que não desconfiasse de nada... Quando eu te dopei, você estava dormindo como um anjo. Um lindo anjo que não era mais meu. Eu sei que está consciente... eu te dei a dose certa de anestésico para que não consiga se mover, mas que ainda possa sentir e perceber tudo ao redor. Não consegue sentir minha dor? Não consegue ver minhas lagrimas?

Em prantos, eu me despeço finalmente de você. Os abutres esperam eu me distanciar, mas avançam voracidade assim que entendem que a distancia que estou é segura para eles. Em minutos, sobra apenas um parco esqueleto do que já foi um ser humano. O ritual pede que nesse momento os ossos sejam triturados com cinzas, mas eu não consigo realizar está etapa e peço que o responsável “verdadeiro” pelos ritos o execute. Ele acata, e transforma o que restou de você em pouco mais do que pó. Estraçalhado, dou meu ultimo adeus: descanse em paz querida!

Titã

Eu passo minhas noites com a insônia dos perdedores. Não faz tanto tempo assim que começou, mas o ranço da derrota me acompanha desde então. Não é fracasso econômico... tampouco de nível social ou coisa do tipo. De fato, eu conquistei a série de pequenos troféus que homens de classe média almejam. Mas eles não me bastam. Mulher, filhos, carro, emprego respeitado e casa cara não valem de nada. Não sem o prêmio real. Sim, é possível ser um “vencedor” e se sentir um nada.
Há dias fiz 41 anos. Seguindo uma estatística torpe, metade (ou mais) do que viverei se foi. Quando era jovem eu sempre me imaginei um escritor. Não qualquer escritor, que fique claro: o tipo certo de escritor. Não um vomitador de Best-Sellers, mas alguém com algo a dizer. Bem, metade da minha vida se foi e eu cheguei a conclusão de que não tenho nada de relevante a ser dito. Nada que alguém queira saber.
Durante minha existência comecei diversas obras, em diferentes etapas da vida. Todas elas foram tratados como amores de verão. A paixão ardia por um tempo mas não durava o bastante pra virar algo concreto. Todas elas viraram pó, pedaços pequenos do passado que eu evito olhar pra não sentir vergonha. Algumas noites eu tento reencontrar esses amores, mas tal qual contrapartes reais essas relações não tem força o bastante para vingar. São apenas cadáveres escondidos nas paredes da mente.
Mas o sono não vem mais... Eu preciso dormir pra manter o castelo que construí sobre os cadáveres das minhas idéias. A maldita vidinha de classe média precisa ser alimentada pelo meu sono correto e meu vigor matinal. Mas eu não durmo. Eu me sirvo de whisky e deito na cama esperando a embriagues como sonífero. Mas o sono não chega, e nos devaneios de insônia me vem uma idéia. Mas eu não quero uma. Não preciso de mais cadáveres, e tento não gerar mais um.
Não funciona.
Eu chego a cochilar, mas sou acordado com o sonho. Eu olho pro relógio e calculo quanto eu já perdi para o dia de amanhã, mas isso não basta pra me manter na cama. Eu preciso escrever. E como um marionete de si mesmo, eu escrevo até meu corpo estar em frangalhos. Durmo duas horas apenas.
Eu preciso recuperar o sono perdido agora. Tenho problemas demais pra resolver pra dar atenção a uma nova idéia sem valor. Ciente disto, deito mais cedo na cama. Minha mente está em fúria, mas meu corpo se rende ao cansaço. Mas não por tanto tempo. Eu sonho de novo. Deitado em minha cama, um cadáver dilacerado se debruça sobre meu peito e se debate. Ele clama o seu direito de nascença, e me força, em pânico a acordar. Eu me levanto e me ponho a escrever.
Os dias seguem nesta rotina anormal. Meu corpo absorve de modo cada vez mais brutal o cansaço, mas o cadáver nunca me deixa dormir. Qualquer pequeno cochilo me desperta, com a criatura horrenda clamando por sua existência. Eu não consigo saber o real impacto desta rotina na minha vida comum... O cansaço acumulado altera minhas percepções, de modo como se só as noites tivessem valor. Nada mais importa, a não ser minha obra.
E após noites e noites de pesadelo e fúria, aquilo que era apenas retalhos se torna completo. Ele me forçou a preenche-lo, de modo que nenhuma outra criação fizera antes. Completo, ele clamava pra ser apresentado ao mundo.
Agora eu sacrifico meus dias. Percorro labirintos editoriais para soltar a minha besta. Não é fácil. Nas entranhas de um sistema falho eu me sujo dia após dia. Conseguir um editor é uma tarefa hercúlea tão desgastante quanto gerar a criatura. Mas ela não me deixa desistir. Ela é grande demais para ficar apenas a minha vista... e finalmente ela acha o editor certo. Maravilhado e aterrorizado com minha cria, ele aceita prontamente publicá-la. Ele sabe que todos que a verem não serão mais os mesmos.
E não são. As primeiras criticas surgem timidamente, entravadas na trágica mecânica que dificulta autores novos. Mas elas avançam como tsunamis, indo das ondas pequenas para o implacável. Um a um, todos os críticos importantes são subjugados. E sobre a rendição deles, criaturas menores chamadas leitores são abatidos em sequencia. Criei um monstro.
Por agora, desfruto o prazer de ter pego o troféu que faltava. Quase perdi os outros no processo, mas recuperei tudo com a mão vencedora. Eu tenho tudo. A fama discreta me proporciona o glamour que somente os melhores escritores possuem. O dinheiro que ganho não se compara ao de Best-Sellers popularescos, mas me possibilita o luxo adequado para aqueles que não ligam pra futilidades. Sobre o ombro do Titã, eu me torno protagonista da biografia que queria escrever pra mim.

Mas o tempo passa...

Todos se perguntam quando que uma nova cria irá surgir. Faz tempo demais que meu primogênito veio ao mundo, e começam a questionar se ele seria uma estrela solitária. Não. Ele não pode ser o único. Eu preciso de mais...
Assim, abandono o bem estar da colheita e me entranho novamente nos porões da criação. Me isolo novamente, tentando criar a angustia necessária que gera arte. Mas nada me vem. Nada bom o bastante. Desesperado, eu revisito antigos amores tentando ver se algum deles pode vingar novamente. Em vão. Nada ali pode crescer tanto quanto o Titã. Eles se debatem em desespero, esmagados pelo peso daquele que é seu irmão mais novo. Um a um, eles não existem mais.
Apavorado, me vejo novamente prisioneiro da insônia e do álcool. Como não tenho mais a rotina de um emprego comum, isto não é mais um problema real. É fácil perder a noção do tempo por dias sentado a frente de rascunhos e Whisky. De fato, eu mal faço idéia de quanto tempo se esvai nesta rotina. Mas coisas começam a acontecer.
Minha mulher anuncia o desejo de divorcio. Eu nem respondo, pois estou ocupado tentando criar um capitulo. Tenho advogados para cuidar disso pra mim, e eles fazem bem o seu serviço. As crianças vão com ela. Bem, um deles não é mais criança... tem 16 anos e apresenta sinais de que me odeia. Mas eu não tenho tempo para chiliques de adolescentes, e brindo a rebeldia dele com mera indiferença. A menor ainda vem me visitar por uns tempos, mas ela percebe que tenho coisa mais importante para fazer e finalmente se afasta.
Eu paro de contar os anos, mas ainda me vejo sozinho e cercado de rascunhos incompletos. A miséria econômica não me encontra, pois o gigante continua a fazer sua mágica ano após ano. Ele se aloja no panteão da literatura universal, referenciado em livros escolares e morando na constelação das obras primas. Eu me torno um fantasma, cada vez mais hermético na minha tentativa de gerar algo novo. E as vezes, só as vezes, novas idéias surgem e se debatem pra nascer. Mas a noite as leva embora, em pesadelos horríveis como os que deram origem ao Monstro. Tal como Cronos, o Titã devora minha novas crias em espetáculos grotescos. Algumas se debatem mais para morrer, mas nenhuma delas tem potencial o bastante pra sobreviver a ele.

E eu também não sobrevivo. Agonizando,  anos depois de ter lhe dado origem, sentado pateticamente numa escrivaninha lotada de natimortos, eu sinto o resto de vida que eu tinha esvair. Eu nem ao menos luto contra isso. Perdi batalhas demais para não aceitar uma ultima derrota. Em meus momentos finais, eu o vejo: gigante, imponente, olhando friamente para mim... Ele sabe que viverá pra sempre.